Uma amizade que virou amor. Um amor que virou exemplo. Um exemplo vivido na generosidade e na paixão pelo Ceará. Vanessa Sousa e Ana Priscila Costa são inseparáveis. Enquanto uma fala, a outra olha com devoção. As mãos entrelaçadas denunciam a cumplicidade. Torcedoras do Alvinegro e companheiras de vida, elas são vitrine de duas causas importantes: a defesa dos direitos da população LGBTQIA+ e a doação de órgãos.
As duas se conheceram na agência bancária onde trabalhavam, há oito anos. Em 2019, Priscila se divorciou do marido. Sem ter com quem deixar as três filhas enquanto trabalhava e estudava enfermagem, contou com o apoio da amiga no cuidado das gêmeas Maria Alice e Maria Luísa, de 13 anos, e da caçula, Maria Laura, de dez anos.
“Eu ficava a semana inteira lá. Não foi difícil me apaixonar pelas meninas, e aí me tornei a tia Van. No final do ano, a gente começou a sentir uma coisa estranha. Ela já tinha me convidado para morarmos juntas e dividir despesas. Fui e a gente se apaixonou. Aí veio a pandemia, foi tudo muito intenso. Nós temos três filhas, que antes eram só dela. Hoje em dia são minhas também. Elas me adotaram”, relembrou Vanessa, de 35 anos.
Na época, Priscila já tinha doença renal, mas numa gravidade menor. Em 2021, a enfermeira perdeu totalmente a função de um rim e a doença entrou em fase terminal. Veio a hemodiálise três vezes por semana, durante quatro horas. Depois de testar parentes mais próximos, estava sem doador.
“Quando a gente era amiga, eu já tinha doença, fazia tratamento, e às vezes ia direto do hospital trabalhar. Eu falei: ‘um dia vou para o transplante.’ E ela disse: ‘eu vou te doar esse rim. Um dia vou fazer o exame e vou ser compatível.’ Nem passava na nossa cabeça que a gente ia namorar um dia. Ainda fiquei seis meses na hemodiálise sem que ela fizesse o teste, por causa do covid. Aí a Vanessa fez e três dias depois saiu o resultado, assim como ela tinha dito, anos antes, ela era realmente compatível”, relembrou Priscila.
O transplante ocorreu num dia simbólico: 8 de março de 2022, dia internacional da mulher. Vanessa foi uma das 2.604 pessoas a ajudar a salvar uma vida. Elas ficaram juntas no mesmo quarto, dividiram medos e ansiedades. A partir dali, a vida daria um novo salto.
“O hospital teve o cuidado, por sermos um casal, de nos deixar no mesmo quarto, de tratar a gente com todo o carinho que esse acontecimento pede. É algo sério, delicado e ao mesmo tempo frágil, bonito. Foi uma mistura de aflição. Fiquei preocupada se ia dar algo errado, se o corpo ia rejeitar”, revela Vanessa.
“Relutei bastante em aceitar. É o amor das nossas vidas dando um pedaço da vida dela para a gente. Tinha medo da cirurgia, do pós… Mas fomos bem orientadas, tivemos uma equipe médica incrível. A cirurgia foi um sucesso. Na hora que transplantou, o rim já começou a funcionar. E hoje a vida dela como doadora também é fantástica. A única exigência ao doador é ter qualidade de vida”, completa a companheira.
Vanessa entrou em cirurgia primeiro. Depois, foi a vez da receptora. Logo após o procedimento, a mesma dúvida angustiava as duas: como cada uma estava após a operação?
“Fiquei agoniada depois que recebi alta, e ela continuar lá. Aí conseguimos com um dos médicos do hospital um encontro bem rápido na UTI. Chorei bastante, mas fui embora tranquila”, conta Vanessa.
“Quando tem a possibilidade de doador vivo, são feitos todos os exames. São pesados vários fatores. Não é só ser compatível. Tem que ver como é a vida desse doador. A equipe é muito cautelosa em dizer se pode ou não doar. É um processo criterioso”, completa Priscila.
Além de exames, as duas passaram por um processo judicial para provar a união, além da etapa de acompanhamento psicológico. Após o procedimento, passaram a conversar sobre o tema nas redes sociais e eventos, como ocorreu na campanha feita pelo Alvinegro.
“A dimensão que tomou tanto no mês de alusão a doação de órgãos, o setembro verde, quando participamos de muitas atividades falando disso, como a campanha do Ceará e as demais, que são importantes para tirar dúvidas sobre o processo. Melhorou minha qualidade de vida, de me preocupar mais com meu corpo, com minha saúde”, ressalta a funcionária do Ceará.
O casal, além de dividir amor e desafios, também compartilha a mesma paixão pelo Vovô. Criadas em famílias de alvinegros, não seria muito diferente em casa. Vanessa é alvinegra desde a infância. Começou a ir aos jogos influenciada pela família. Hoje, trabalha no setor de compras do Ceará.
“Me apaixonei pela energia da torcida, pela emoção de torcer por um time que simboliza muito para mim. Torço em dobro. Como funcionária e torcedora. Faço a distribuição de suplementos dos jogadores, a parte de alimentação com a nutrição, entre outras coisas. Trabalhar no meu clube e torcer pelo meu clube, não tem nada que pague”, explica.
“Uma das gêmeas é doente pelo Ceará. Poder levar ela ao estádio, sermos quem somos, e levar nossa filha ao jogo do Ceará, independente do local da arquibancada, sermos respeitadas. Nós nunca passamos por nenhum tipo de preconceito”, completa.
Neste 28 de junho é celebrado o Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexuais e Assexuais). A data celebra a diversidade e as lutas desse público em busca de direitos e respeito. Priscila se reconheceu bissexual quando se apaixonou por Vanessa.
“Eu me descobri bissexual quando me apaixonei por uma mulher aos 34 anos. Existe uma dualidade. Mas a gente quando vê que realmente é amor, a gente se decide, por ser mais madura, convicta. Vou viver esse amor e pronto. E fiz isso”, revela.
Vanessa lembra a dificuldade de se reconhecer bissexual. Isso ocorreu após a morte da mãe. A funcionária sempre deixou explícita a relação com a companheira, inclusive no clube.
“Foi confuso. Você lutar contra o que sente, até sentir quem você realmente é. Quando me permiti, foi como tirar um peso das minhas costas. Vi quem era a Vanessa, pude viver a Vanessa, que sempre esteve ali escondida em algum lugar”, lembra.
“A gente se educa para lidar com certos tipos de situações. Me respeita, que te respeito. Não vejo problemas aqui (no Ceará) em relação a isso. Desde o primeiro dia, eu pude ser quem sou, mostrar minha família a todo mundo sem nenhum tipo de preconceito ou restrição”, completa.
O Brasil é o país mais violento com a população LGBTQIA+. Ano passado, 257 mortes violentas contra esse público foram registradas no país. Os dados são do Grupo Gay Bahia (GGB). O casal enxerga esse preconceito e ódio, registrado também no esporte.
“Todo dia morre alguém por questão de orientação sexual. É uma data que realmente precisa existir, e a gente tem de mostrar exatamente isso… Nada mais do que amor entre duas pessoas”, ressalta Priscila.
As duas famílias acolheram o casal e se apoiaram. A criação das três filhas é reflexo do respeito e da liberdade vividos por elas.
“Prezamos dar a elas uma base forte, para que não sofram em casa o que tantas pessoas sofrem em relação à orientação sexual. Se elas, porventura, se apaixonarem por pessoas do mesmo sexo, terão nosso apoio. Tem muito preconceito lá fora. Elas já são blindadas em relação a isso. Alguns momentos elas passam por… ‘Tu tem duas mães? Isso é errado” Aí elas falam: não, amor não é errado. Ser feliz não é errado.” Elas têm essa opinião bem formada. Não ferindo o próximo, não tem porque não ser amado” Vanessa.
“Independente do que falem, o que elas vivenciam em casa é outra coisa. É o amor de duas pessoas, como qualquer outro. Somos uma família linda. Tem duas palavras primordiais: amor e respeito. A gente ensina que elas devem se respeitar e respeitar todo mundo. A gente ama pessoas. Tem que amar alguém que as respeitem e as amem”, reforça Priscila.
O cirurgião responsável pela procedimento revelou ter sido Vanessa e Priscila o primeiro casal lésbico a fazer doação de órgão entre si atendida por aquela equipe do hospital. Das 41 mil pessoas na lista de espera por transplante no Brasil, a maioria é de homens. Entre 2022 e 2023 o número de doadores aumentou 17%.
As cicatrizes são marcantes e carregam histórias. Mas o porto seguro está na relação e no futuro pelo qual batalham.
“Já passamos por tanta coisa, tanta incerteza, que o fato de estarmos vivas, bem, conseguindo viver nosso amor, e com a nossa família, já é gigantesco.
Há dois anos e meio não tínhamos essa certeza. Tudo que a gente queria era voltar para casa, ficar com a nossa família e não era assim. Ela foi meu milagre. Somos felizes nas pequenas coisas”, explica Priscila.
“Eu me apaixonei pelo ser humano que essa mulher é. A força dela é incrível, a fé dela é contagiante. Eu digo que me apaixonar por ela foi a coisa mais fácil. Sou muito feliz. Ela mudou minha vida, as meninas mudaram minha vida. Foi um renascimento para ambas, tanto para ela quanto para mim”, completa Vanessa.
Fonte: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/jogada/um-rim-novas-vidas-torcedoras-do-ceara-vivem-historia-de-amor-e-doacao-1.3528101