O dia 17 do mês de agosto de 2025 vai ficar marcado pra sempre na memória dos torcedores alvirrubros do Esporte Clube Internacional de Santa Maria. Afinal, foi neste dia que o clube conseguiu o tão sonhado acesso à primeira divisão do Campeonato Gaúcho após 14 tortuosos anos. Em sua quase centenária história, o clube não havia ficado tanto tempo longe da elite futebolística gaúcha. A vaga veio após duas vitórias contra a equipe do Veranópolis E.C., sendo a partida de volta ocorrida no Estádio Presidente Vargas, que possui a curiosa alcunha de Baixada Melancólica.
O acesso trouxe um sentimento de saudosismo e esperança para o torcedor santa-mariense. Muitas são as histórias sobre o passado glorioso do clube. Os torcedores mais antigos lembram com saudade dos esquadrões da década de 1960. Também estão na memória os craques que desfilaram pela Baixada Melancólica, como Mário Sérgio, Dener, Ronaldinho Gaúcho e Fernandão. Além deles, destaca-se Oreco, campeão mundial com a Seleção Brasileira em 1958 que começou sua carreira profissional no Inter-SM.
Mas o destaque fica para os anos 1980. A década de ouro do alvirrubro começou marcada pela disputa da Taça de Prata (o equivalente à Série B do Campeonato Brasileiro atual) e o título de Campeão do Interior Gaúcho, em 1981. Essa conquista garantiu a participação na Taça de Ouro de 1982, fazendo com o que o time figurasse entre os grandes clubes brasileiros.

A participação na elite do futebol brasileiro foi marcada por um embate em Santa Maria contra a forte equipe do Vasco da Gama, que na época contava com nomes como Mazarópi e Roberto Dinamite. O resultado: 3×0 para o Alvirrubro, sendo esta partida considerada uma das maiores da cidade de Santa Maria.
É em meio ao melhor período da história do Inter-SM que surge um grupo que se destacou em meio a torcida. Estamos falando aqui da Torcida Organizada Maré Vermelha. Mas o que poderia haver de diferente no surgimento de uma torcida organizada? A resposta é que era uma torcida gay.
Além desta surpreendente informação, soma-se o fato de que a Maré Vermelha foi a torcida gay mais longeva do Brasil, atuando ao longo de treze anos. Neste texto, apresento parte da minha pesquisa que desenvolvi para meu Trabalho Final de Graduação em História e que posteriormente se tornou livro contando sobre a origem deste grupo.
Breve histórico das torcidas gays brasileiras
Em sua tese de doutorado, Luiza Aguiar do Anjos afirma que localizou menções a 21 torcidas gays no Brasil. Dentre este número, destacam-se as torcidas que são vinculadas a grandes clubes do futebol brasileiro: a FlaGay, do Flamengo, e a Coligay, do Grêmio. O primeiro grupo citado surge no ano de 1979 e foi impactado diretamente pelo preconceito da diretoria do clube, que associou a derrota em um clássico Fla-Flu à presença da torcida no Maracanã.
Já a Coligay teve vida mais longa. Sua fundação ocorre em 1977, período em que o Grêmio via seu arquirrival Sport Club Internacional empilhar taças estaduais e nacionais. A gangorra vira no Campeonato Gaúcho de 1977, onde André Catimba marca seu icônico gol em cima do rival e se lesiona na emoção da comemoração.
Para os torcedores gremistas, este gol e o consequente título gaúcho foram um marco inicial para uma era de conquistas históricas do clube. Desde então, o Grêmio acumulou o Campeonato Brasileiro de 1981, a Taça Libertadores e o Mundial de Clubes, em 1983, além de 3 títulos estaduais.
A Coligay ganha fama de “torcida pé-quente”, pois esteve atuante durante este período de vitórias do clube. Também chama atenção o fato da torcida ser convidada pela diretoria do Sport Club Corinthians para assistir e torcer pelo clube na famosa final do Campeonato Paulista de 1977, que marcou o fim do jejum corinthiano de 23 anos sem títulos. A associação à Coligay a estes períodos vitoriosos foi fator determinante para a atuação da torcida ao longo de 6 anos apoiando o tricolor gaúcho.
As torcidas aqui citadas são as que mais conseguiram reconhecimento dentro do mundo do futebol, ainda que frequentemente transformadas em alvo de chacotas por parte de torcedores rivais. Esse histórico de resistência e visibilidade contrasta com a realidade enfrentada pelas torcidas LGBTQIA+ na atualidade.
Segundo levantamento divulgado pela CartaCapital, oito em cada dez torcidas LGBTs não frequentam estádios de forma organizada devido ao preconceito e à violência. Além disso, estudo recente da Agência Brasil aponta que os casos de homofobia no futebol brasileiro aumentaram 76% em 2022. Esses dados demonstram que a luta pela inclusão e pelo direito de torcer livremente ainda enfrenta barreiras estruturais e culturais profundas no esporte.
O nascimento da Maré Vermelha
Fora do eixo dos grandes clubes brasileiros, destaca-se a Torcida Organizada Maré Vermelha. Vinculada ao Inter-SM, o grupo surge no já citado melhor período do clube. O ano de fundação da torcida era considerado um mistério entre seus antigos membros e torcedores do Inter-SM. Entretanto, pesquisas aos jornais locais forneceram informações sobre a fundação da torcida. O Jornal A Razão, em uma pequena nota no dia 3 de abril de 1979, noticiou que:

Sem muitas informações, sem muito alarde, Fato é que o jornal não informou o principal fator de diferenciação desta torcida frente às outras já existentes: era uma torcida gay. Nas arquibancadas, esse detalhe não demoraria a ser notado. Com batucadas, faixas e performance, a Maré Vermelha foi conquistando espaço, até se consolidar como parte do universo do futebol santa-mariense.
Entretanto, a Maré Vermelha não nasce no futebol. Sua origem está vinculada ao carnaval de rua santa-mariense, especificamente com a Escola de Samba Vila Brasil.
Esta escola era conhecida por abrigar, em seus ensaios e desfiles, grupos socialmente excluídos que encontravam ali um espaço de acolhimento e expressão, incluindo a população negra, mulheres e pessoas LGBTQIAPN+. Um exemplo marcante foi a “Ala-Maravilha”, composta por integrantes dessa comunidade e que também servia como local de socialização.
Um dos membros desta ala era Marcelino Cabral. Marcelino era servidor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), além de professor de balé e carnavalesco. Marcelino era um grande apreciador de futebol e, vendo um imenso potencial na Ala-Maravilha, resolveu adentrar os estádios de futebol com os gays de Santa Maria.
Entretanto, a tentativa inicial não foi no Inter-SM, mas sim no seu maior rival: o Riograndense Futebol Clube. No Estádio dos Eucaliptos, Marcelino e seus amigos não foram aceitos, sendo recepcionados com agressões e violência dos torcedores esmeraldinos.
Indignado com tamanho preconceito, Marcelino resolveu levar a ideia de uma torcida gay para o Esporte Clube Internacional, sendo mais bem recebido pelos torcedores que aceitaram a presença do grupo nas arquibancadas.
Juntamente com Monovan Gomes, Otávio “Tavico” Amaral, Amadeu Flores e Elizabeth Flores, dentre outros, Marcelino fundou a Torcida Organizada Maré Vermelha. Aos poucos, a torcida foi ocupando as arquibancadas da Baixada Melancólica, sendo reconhecida como um grupo apoiador do Inter-SM pelos torcedores e pela imprensa esportiva.
“A Maré tá aí, a Maré chegou, pra alegrar a senhora e também o senhor!”
A frase acima era um dos cânticos entoados pela torcida ao entrar no estádio que traduzia bem o espírito da Maré Vermelha: união, respeito e festa em nome do Alvirrubro. Durante 13 anos, o grupo representou, ao lado das demais organizadas, a alma da Baixada Melancólica. Sua presença era celebrada tanto pelos torcedores quanto pelas rádios locais, que faziam questão de destacar “as bichas da Maré”, como seus integrantes se autodenominavam de forma carinhosa.

Relatos de ex-membros ajudam a compreender esse modo irreverente de torcer. Marquita Quevedo, integrante da torcida entre 1985 e 1992, lembra do empenho nos dias de jogos: “Farinha, papel picado, alegorias, sombrinhas”. Ela também recorda o clima festivo em datas especiais:
“Na Semana Farroupilha íamos vestidas de prenda; na Páscoa, de coelhinhas. Imagina um gay, de maiô branco, dentro do estádio, jogando balas para o povo?”
Elizabeth Perez Flores, presente na fundação ao lado do irmão Amadeu, ressalta a força e a ousadia do grupo, comparando-o com a famosa organizada corintiana: “Não éramos do Corinthians, mas também éramos um bando de loucos!”. Ela recorda ainda um episódio marcante: em um jogo debaixo de forte chuva, a mobilização da torcida foi tamanha que até o bispo da cidade, Dom Ivo Lorscheiter, foi ao estádio abençoar a Maré Vermelha.
A ligação da Maré Vermelha com o carnaval não se restringia apenas à Ala-Maravilha da Escola de Samba Vila Brasil. Como recorda Mathias Vieira, integrante da torcida nos anos 1980, a presença carnavalesca também se fazia sentir dentro do estádio com sua tradicional charanga:
“Tinha sempre um pessoal da bateria que, nos dias de jogo, ia tocar lá pra agitar junto com a torcida. Eram uns dez, mais ou menos, que ficavam perto de nós, às vezes na frente, às vezes atrás nas arquibancadas, mas sempre dando aquele ritmo e animando a festa”.
A irreverência também se estendia além do campo de futebol. Famosa por ser “pé-quente” e animar arquibancadas, a torcida era convidada para apoiar equipes locais em campeonatos de futsal. Marquita relembra um episódio no Ginásio do Corintians:
“Levamos tanta farinha e papel picado que o jogo teve que ser interrompido. O ginásio ficou branco, parecia uma nuvem, todo mundo com a cara branca, parecia fantasma! Depois disso proibiram a entrada de papel e farinha”.
Foi nesse mesmo ginásio que ocorreu, segundo o colunista Claudemir Pereira, um episódio histórico: a primeira partida disputada por um time formado por gays em Santa Maria. Em uma preliminar, os membros da Maré Vermelha venceram por 1 a 0 a equipe organizada pela Fiá-Fiá, outra torcida do Inter-SM.
Apagamento e silenciamentos: a importância da pesquisa acadêmica
Por muito tempo, a história da Maré Vermelha permaneceu esquecida, restrita à memória de antigos torcedores do Inter-SM. Foi em uma dessas conversas que tive meu primeiro contato com a torcida: em uma mesa de bar, após um jogo de futsal entre estudantes e professores da Universidade Franciscana, o tema da cultura e do futebol santa-mariense dos anos 1980 veio à tona.

Entre lembranças e risadas, alguém mencionou: “a torcida dos gays, né?”. Naquele momento, percebi que havia encontrado um tema de pesquisa singular: uma organizada formada por homossexuais no coração do Rio Grande do Sul.
A partir daí, iniciei uma busca por informações e personagens. Descobri, contudo, que parte importante dessa história já se havia perdido. Um ano antes dessa conversa, dois nomes centrais, Marcelino Cabral e Monovan Gomes, haviam falecido com poucos meses de diferença. Monovan, inclusive, seguiu ligado ao clube mesmo após o fim da torcida, trabalhando como roupeiro até falecer trabalhando durante um jogo, em 2014. Outros fundadores, como Tavico Amaral e Amadeu Flores, também já não estavam vivos.
Apesar dessas perdas, encontrei ex-integrantes espalhados pelo Brasil, muitos deles hoje atuando no ativismo LGBTQIAPN+. Foram suas vozes que me permitiram reconstruir parte dessa trajetória. Ao todo, entrevistei quatro membros da Maré Vermelha, cujos relatos espontâneos e emocionados ajudaram a iluminar uma história marcada tanto pela irreverência e alegria quanto pelo silêncio imposto a homossexuais durante a Ditadura Civil-Militar e após ela.
A pesquisa buscou romper esse apagamento, dando visibilidade à torcida gay mais longeva do país. Para isso, utilizei registros jornalísticos e memórias orais, resgatando narrativas que o tempo e o preconceito tentaram apagar.
O reconhecimento público dessa história se ampliou quando a pesquisa foi contemplada pela Lei do Livro de Santa Maria, projeto da Câmara de Vereadores que transforma pesquisas acadêmicas em livros gratuitos, distribuídos à população e às escolas municipais. Com o lançamento de “Torcida Organizada Maré Vermelha: uma trajetória de resistência nas arquibancadas de Santa Maria – RS”, o grupo não permanece apenas nas lembranças individuais, mas se inscreve na memória coletiva da cidade.
Além da edição impressa viabilizada pela Lei do Livro de Santa Maria, também existe a sua versão digital que disponibilizo através do Ludopédio. Dessa forma, a história da torcida poderá alcançar não apenas a comunidade santa-mariense, mas também torcedores, pesquisadores e interessados no futebol e na luta LGBTQIAPN+ em todo o Brasil, ampliando o alcance de uma memória que por muito tempo esteve silenciada.
O legado da Maré Vermelha
Não foram poucas as contribuições da Maré Vermelha para a história LGBTQIAPN+ brasileira. Considerada um dos primeiros movimentos organizados da causa em Santa Maria, teve um triste fim no ano de 1991.
O clima nas arquibancadas era hostil, pois o Inter-SM estava vivenciando tempos difíceis na Segunda Divisão Gaúcha. A torcida, indignada, posicionava suas faixas ao contrário no alambrado, além das fortes vaias direcionadas aos atletas e diretoria. Após fraca atuação em jogo contra o Esporte Clube Cruzeiro de Porto Alegre, um grande protesto foi organizado em torno da Baixada Melancólica.
Em meio à confusão, Marcelino Cabral é agredido por um dirigente alvirrubro, fato que ele considerou a gota d’água em uma relação que já estava fragilizada.
Após este triste incidente, Marcelino decidiu se afastar de suas atividades como torcedor do Inter-SM. Sendo o elo do clube com a Maré, sua ausência foi sentida profundamente entre os membros da torcida. O grupo ainda acompanhou o time no estádio em alguns jogos da temporada seguinte, porém sua força foi diminuindo.
Além disso, a epidemia da AIDS que acometeu o país também fez suas vítimas entre os membros da torcida, fator que é citado nos relatos como diminuição do número de membros.
Mas o legado da torcida ainda é sentido na atualidade. Foi a partir deste grupo que lideranças da luta LGBTQIAPN+ surgiram, sendo reconhecidas no cenário estadual. Podemos citar aqui dois exemplos: Cilene Rossi e Marquita Quevedo.
Cilene Rossi, mulher trans, construiu sua trajetória marcada por dores, preconceitos e resistência. Desde cedo enfrentou assédios, exclusão familiar e episódios de violência, mas encontrou forças para afirmar sua identidade e ocupar espaços que lhe eram historicamente negados. Na juventude, achou acolhimento na Maré Vermelha, tornando-se integrante da torcida a partir de meados da década de 1980.
Sua presença nas arquibancadas não era apenas um ato de paixão pelo futebol, mas também de afirmação política e social. Cilene abriu caminhos ao se tornar a primeira pessoa trans de Santa Maria a conquistar um emprego formal com carteira assinada, um marco de visibilidade e conquista de direitos em um contexto de profunda marginalização.
Hoje, Cilene ocupa um espaço político relevante como assessora parlamentar em Santa Maria, onde atua em favor de direitos básicos como a retificação do nome social, assessoria a outras mulheres trans, e visibilidade para a população trans em espaços públicos e institucionais.
Marquita Quevedo é outra figura central na história da militância LGBTQIAPN+ de Santa Maria. Expulsa de casa aos 14 anos por revelar sua identidade de mulher trans, viveu períodos de rua, migração, acolhimento por comunidades de pessoas que enfrentavam problemas semelhantes, e voltou para Santa Maria impulsionada pelo desejo de pertencer.
Sua atuação vai além de sua própria vivência: Marquita participou da fundação e organização de eventos importantes como a Parada Livre da Região Centro do RS, o concurso Rainha Gay (mais tarde Rainha da Diversidade) e atualmente é integrante da ONG Igualdade.
Além de militante, Marquita também fez história institucionalmente: foi a primeira assessora parlamentar trans em Santa Maria, levando sua voz para espaços formais de decisão. Politicamente ativa, Marquita conta que sua trajetória como militante começa na Maré Vermelha.
Integrante da torcida nos anos 1980, ela afirma que a vivência coletiva nas arquibancadas “construiu a Marquita” que mais tarde se tornaria militante. Apesar não ser um espaço primariamente político, o grupo ajudou a construir a consciência política e de gênero de Marquita.
Marquita recorda com orgulho os momentos vividos na Baixada Melancólica, entre cantos, festas e resistência, destacando que a Maré Vermelha não apenas marcou a história de Santa Maria, mas colaborou para o movimento LGBTQIAPN+ nacional ao existir e resistir por tanto tempo em uma cidade do interior onde, como ela enfatiza, a vivência da diversidade era ainda mais difícil.
Por uma memória da Maré Vermelha
A história da Maré Vermelha ultrapassa as arquibancadas da Baixada Melancólica. Mais do que uma torcida organizada, ela foi um espaço de resistência, de festa e de afirmação identitária em um dos ambientes mais hostis à diversidade. Ao existir e resistir por 13 anos, a Maré inscreveu Santa Maria no mapa da luta LGBTQIAPN+ no futebol brasileiro, desafiando preconceitos e ampliando possibilidades de pertencimento.
Hoje, lembrar e registrar sua trajetória é também um ato político, pois garante que a memória da torcida não permaneça silenciada e que seu legado continue inspirando novas gerações de torcedores e militantes a ocuparem, sem medo, os estádios e a vida pública.
Referências
ANJOS, Luiza Aguiar dos. De “São bichas, mas são nossas” à “Diversidade da alegria”: uma história da torcida Coligay. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 388 p. 2018.
SILVEIRA, Eduardo Bortolotti. Torcida Organizada Maré Vermelha: uma trajetória de resistência nas arquibancadas de Santa Maria. Santa Maria, Câmara Municipal de Vereadores de Santa Maria, 2024.
Fonte: https://ludopedio.org.br/arquibancada/mare-vermelha-a-torcida-gay-do-inter-de-santa-maria-que-fez-historia-no-futebol-brasileiro/








